quinta-feira, janeiro 08, 2004

Belém liberta da coleira

(o texto abaixo marca o renascimento do Movimento Orla Livre)

Caro leitor de O Liberal, peço licença para esta crônica sentimental. De impulso compro um bilhete para a ilha do Mosqueiro, no feiíssimo Terminal Rodoviário — é de dar dó saber que, no local, se erguia a bonita gare da estrada de ferro Belém—Bragança! Abro parêntese para opinar que a atual estação de passageiros, a cúpula do Memorial do General Barata e outros prédios modernosos quase transformam São Braz num museu de horrores arquitetônicos. O bairro é salvo pelo antigo Mercado de Carne. Fecho parêntese.

Uma hora de viagem e o Beira-Dão percorre a orla onde ilhéus permanentes ou de férias dialogam, cantam e presenciam o belo pôr-do-sol lá pras bandas do Marajó. O cenário fluvial me deixa reflexivo e sonho com uma Belém espelhada no rio Guamá e na linda baía do Guajará, Belém sem claustrofobia, liberta da coleira que a cinge. Eu a vislumbro contínua, sem galpões, madeireiras, empilhadeiras mecânicas ou construções inapropriadas. Desenhada pelo gênio equatorial do Milton Monte, tal qual o passeio do Ariramba, a trajetória parte da universidade, contorna o Ver-o-peso, a Estação das Docas, o Ver-o-Rio, e segue sinuosa até Icoaracy. Casais de mãos dadas reforçam os laços amorosos, atletas aprimoram o preparo físico e espiritual neste reencontro com o rio, escuto a batida ritmica do oito com timoneiro da Tuna Luso, o senhor de idade respira com prazer, pescadores esportivos desenrolam a carretilha, crianças comem amendoim torrado...

As imagens ficam confusas e, angustiado, balbucio: Por que esta timidez fluvial? Quão tola é a inveja do oceano, pois o rio marrom que nos margeia é o mesmo que alimenta o azul atlântico. A um solavanco do ônibus, desperto para ouvir o bramir das improváveis ondas, surgem as primeiras estrelas, a lua cheia tinge de prata as escamas da água, e agora tenho a certeza de que o tempo é uma ficção e o rio incomensurável. Vivam as janelas que se abrem, mas o que desejamos, no fundo da alma, é toda a orla livre.

Luís Lacerda

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