sexta-feira, outubro 19, 2007

Aquele fogo seria Canudos destroçada? (Nagib Charone Filho - O Liberal)

As fotos dos destroços durante e após o incêndio no centro comercial de Belém não deixam dúvidas da desordem, da balbúrdia e da catástrofe.
Por entre trastes ao chão, por entre máquinas inúteis, por entre fachadas antigas e corroídas pelo tempo e pelo descaso, as pessoas correndo desordenadamente, os cabelos desgrenhados e as bocas em sinal de terror. Ao fundo, as labaredas do fogaréu elevando ao céu a cortina densa do laranja fortíssimo, contrastando com o negro da fuligem. Era a imagem viva da entrada do inferno aonde chegava o barco de Caronte, o barqueiro que transportava as almas para o infortúnio perpétuo do inferno, na mitologia grega.
A Canudos a que me refiro é a cidade do interior da Bahia que sublevou contra a República nascente nos idos de 1899, construída pelo famigerado Antônio Conselheiro e que Euclides da Cunha relata ter sido expugnada palmo a palmo na precisão integral do termo, pelo bombardeio serrado do Exército brasileiro, extinguindo-a do mapa. Quase o que aconteceu com a espanhola Guernica, 50 anos após, sob o fogo impiedoso dos nazistas, magnificamente retratada por Picasso em sua obra com o mesmo título, em desenhos de configuração pavorosa e cruel.
Belém perde a passos rápidos sua mais forte característica quando perde a presença das suas construções seculares, dos seus sobradinhos e das suas ruela estreitas e aconchegantes de origens imemoriais. As ruas atulhadas de obstáculos informes, irreconhecíveis aos olhos de um observador moderno, o nosso centro comercial e histórico não pode ser defendido em casos como esse, porque não permite a ação das corporações de socorro.
Mesmo nos dias de normalidade aquilo mais se parece com as ruas desarrumadas e sujas dos burgos da Idade Média, onde tudo era vendido e trocado, misturando produtos manufaturados com produtos perecíveis, entrelaçando porcos, galinhas, crianças e adultos, numa barafunda de fazer inveja aos urubus do Ver-O-Peso.
Preservada por leis municipais e federais, a área do centro histórico não guarda nem de longe as características de um passeio público. Relegada ao abandono desde décadas sucessivas, a área se vê às voltas com a invasão dos mais diferentes tipos de ocupantes e com as mais variadas formas de comércio, quase todos na ilegalidade, ao arrepio das leis, que julgam não serem válidas porque estão 'trabalhando'.
O centro comercial e também centro histórico é uma das mais marcantes características da cidade, não só para os saudosistas que a viram no esplendor da ordem, mas também para tantas outras pessoas que por aqui passaram ou que dele ouviram falar e que por ele têm curiosidade. Todas as intervenções que aquele logradouro sofreu por parte das administrações dos diferentes governos, quer tenham sido prefeitos ou governadores, foram desastradas e mais amaldiçoaram a beleza fulgurante daquele templo de encantamentos. Enquanto outras cidades no mundo inteiro procuram preservar as marcas dos períodos de fausto por que passaram, Belém perde cada vez mais as suas mais inerentes peculiaridades, o seu 'DNA', os seus cromossomos e o perfil da sua face.
Como falar em turismo! Quem virá ver esse polimorfismo, esse saneamento de esgoto de rato, essa arquitetura tacanha e amarfanhada, onde se comparam o grego e o gótico com as palafitas horrendas carcomidas de ferrugem e pintadas de sujeira? Como conviver com essa involução amaldiçoada quando se sabe que a sua gênese foi de princesa?
Belém é uma Vendéia (cidade francesa que na Revolução de 1789 rebelou-se contra a República e foi massacrada com a morte de muitos dos seus filhos) desmemoriada e desavergonhada, não interessando a quem de direito a ordem e o progresso. Enquanto aquela se rebelou contra as leis da República, a nossa renega a simples aplicação de um código de posturas.
É engenheiro civil e professor da UFPA.
E-mail: nagibcharone@yahoo.com.br